Saideira

A despedida era das férias, mas quem disse adeus foram meus amigos.

Aquela mesa de metal, de cadeiras duras e “espalhanapos” à vontade, só não ganha destaque na praça de alimentação, por causa da sua localização, tão escondida atrás de uma pilastra que nunca se deram ao trabalho de trocá-la. Ela também passaria batida por mim, se não fosse a memória que ela me traz: a despedida das tardes vazias das férias.

O dia seguinte seria nosso último “primeiro dia de aula”, então marcamos a reunião ー palavra que ainda estava fora do ambiente profissional e, portanto, ninguém chorava ao ouvi-la ー com um objetivo bem definido: “ah, sei lá, vamo se trombar”. Na nossa adolescência, o álcool e a maconha não nos conheciam, assim, fumar ou beber não eram um pré-requisito para se reunir, a presença já bastava.

Não sei como escolhemos aquela mesa, que na época, era igual a tantas outras ー talvez foi sorte ou talvez ela não estivesse sendo guardada por um crachá. Também não lembro com detalhes das horas que passamos lá, na verdade, lembro mais de um momento específico em que, após uma risada sem compromisso, olhei para os outros lugares ocupados. Na minha frente, o Tomate que (ainda) ria dos próprios erros e não parava de falar da sua paixonite que o tinha adicionado no MSN durante as férias ー mal sabia que a vergonha de dançar em público ia impedi-lo de conhecer os lábios dela. Ao lado dele, o Siqueira, preguiçoso, inteligente, sem barba e nenhuma militância ー atualmente, ele é taxado de comunista e vende bolinhos de pote. O Rafs, que sempre fez o maior sucesso com as garotas, mas tinha se apaixonado mesmo pelo Senhor do Anéis e começado seu próprio livro ー 13 anos depois, ele namora um cara e ainda não terminou de escrever. E eu pagava de malandro por ouvir rap e com a certeza de que eu passaria sem recuperação naquele ano ー muitas ilusões. Sendo que a maior delas era acreditar que as coisas não mudariam e nem que o tempo levaria embora essas companhias.

Essa memória me ressurgiu durante uma conversa que tive com a Pri ー que apesar de não estar lá, também foi uma amiga distanciada pelos ponteiros ー onde surgiu a pergunta: “se você conhecesse seus amigos hoje, vocês se conectariam?”, e isso evoluiu para outra: “se vocês não são amigos agora, por que eram no passado?”

Tá certo que a convivência diária no mesmo ambiente é um terreno muito fértil. Faculdades, empresas, cursos, clubes… são grandes canteiros de obras das construções que são as conexões. Sim, todos somos pedreiros das nossas amizades, paixões e até das relações não declaradas. Porque do mesmo jeito que uma obra, uma sintonia verdadeira ー mesmo que passageira ー exige trabalho de ambas as partes, equipamento de segurança para se proteger das pancadas; a comunicação é um dos principais problemas e ninguém é capaz de dizer quando termina. Sem contar a manutenção para manter aquilo de pé.

Dentre os canteiros, o colégio é o mais diferente por conta da diversidade de pessoas juntas e essa noção só veio com o tempo mesmo. Ele é um grande elemento numa equação que alimenta o autoconhecimento. O que quero dizer é que quanto mais a gente cresce, mais a gente se encontra e se torna a gente, porque nossas paixões e, consequentemente, nossas diferenças crescem usando as vivências como alvenaria. Claro que eu escrevia no colégio, mas meus projetos, as crônicas, as histórias e a comédia ー se você acha minhas piadas ruins agora, nem imagina no passado ー nada disso tinha acontecido ainda. Como resultado, hoje, sou muito mais Pedro do que eu jamais fui. E o mesmo vale para meus amigos. O Tomate está mais empreendedor e certinho do que nunca, o Rafs se descobriu um barman espetacular, o Siqueira está morando numa aldeia indígena. E todos estudaram na mesma sala sem saber que seriam tão diferentes décadas depois ー parece até começo de piada: “um engenheiro, um escritor, um barman… entraram numa escola”.

Sei que existem muitos fatores para você se tornar amigo ou desafeto de alguém. Afinal, você não é camarada de todo mundo que vê com muita frequência ー inclusive, muitas amizades seriam melhores se a convivência diminuísse. Mas a fase da vida é uma condição importante.

Éramos puros em relação a tudo: à vida, a nós mesmos e uns com os outros. Eu não tinha preguiça de conversar com o Rafs, ranço da presença do Tomate e sabia até se Siqueira continuava vivo depois de falar besteira pro cacique. São sentimentos que vieram com os anos. Da mesma forma que nossos uniformes, essa pureza nos mantinha iguais e unidos em um mesmo universo de formaturas, notas, garotas, professores, MSN etc.

Atualmente, sentamos em mesas separadas, modernas, fora do shopping e com companhias que fazem mais sentido, mas fico feliz que a outra ainda resiste, velha, escondida e que de vez em quando eu possa visitá-la. Assim como minha lembrança, ela é uma das razões por eu ser quem sou. E eu me orgulho disso.

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