Vamos passear?!

Uma história sobre as voltas que a vida dá…no quarteirão. 

     Meu nome é Odair Edilson da Silva, e todo mundo me chama de Corintiano. Você pode me chamar como quiser, o importante mesmo é saber de 3 coisas: onde trabalho: na Rua do Horizonte Sereno, na rua mesmo que é tão esquecida que liga o nada a lugar nenhum. Inclusive ser esquecida facilita muito a 2ª coisa que você deve saber: o meu trabalho de vigia noturno na guarita, que é de onde eu vejo o mundo. De segunda a sábado das 22 h às 6 h. E a 3ª coisa é que faço isso há 32 anos.
     Geralmente, as pessoas não enxergam a gente quem trabalha servindo, mas fique sabendo que a gente vê e escuta tudinho. Eu mesmo já presenciei muita coisa. Só que essa história não é sobre mim, nem sobre algo diferente, é sobre um rapaz passeando com seu cão. Algo tão cotidiano quanto especial.
     Conheci essa dupla em momentos diferentes. O rapaz ainda era adolescente quando comecei a trabalhar aqui e sempre via ele indo e vindo de bares e casas dos amigos. Já o cãozinho, conheci pelo ouvido: como todo animalzinho recém-chegado, ele precisou dormir sozinho pra se acostumar com a nova casa e eu, da rua, de coração partido ouvia os choros tristes.
     Mas essa fase logo passou e o cachorro pode passear no quarteirão. Ele ainda era pequeno, você tinha que ver, as ruas ficavam enormes perto de um bichinho tão fofo. Mal conseguia cheirar os postes gigantes, tadinho. Nessa época, o rapaz ia rimando durante a volta no quarteirão. Ele achava que eu não ouvia aqueles cochichos improvisados e, cá entre nós, era ruim demais. Acho que o garoto se tocou, ou me viu segurando a risada, porque parou depois de um tempo.
     E falando em tempo, não tinha uma catástrofe climática que afastasse aqueles dois dos passeios. Uma vez, com um toró daqueles chegando, os ventos faziam os carros balançarem, eu dentro da guarita torcia pra ela virar arca de Noé e não submarino de milionário. E lá estavam eles: o rapaz puxando pra irem mais rápido, e o cão, agora maior e mais forte, impondo sua velocidade tranquila para aproveitar cada cheirada. Afinal, já dizia o ditado: aproveite cada passeio como se fosse o último. E naquele dia parecia mesmo.
     Admito que foi assim que eles ganharam minha simpatia: nas discussões pra ver quem mandava na guia. O rapaz queria sempre seguir o caminho mais gostoso para ficar olhando dentro das casas, bem fofoqueiro mesmo, enquanto o cachorro queria o caminho com mais plantas e só acelerava quando chegava perto de grades e portões de cachorros machos, ou quando uma fêmea tava por perto. De bobo não tinha nada.
     E quando encontravam outro macho na rua, sai da frente! Era puxa de um lado, estica a guia do outro, o cachorro querendo briga, o menino tentando apartar.
     Teve uma vez que o rapaz saiu de uma festa da vizinha para passear e, enquanto fazia isso, viu que sua ex-namorada estava na porta, prontinha pra entrar na bagunça. O rapaz pediu baixinho pro cachorro andar mais devagar, no passo de formiga. E o bicho, só de sacanagem, puxou a guia até a moça ver e chamar eles. O rapaz ficou de sorriso amarelo fazendo social, coitado.
     No fim da volta do quarteirão, ouvi os dois discutindo relação. Do rapaz saiu “melhor amigo é uma ova”, “vou te trocar por um gato” enquanto o cachorro ouviu tudo sentadinho e deu uma boa lambida de desculpas no seu tutor. Quem não perdoaria?!
     Num outro passeio, no meio dele na verdade, o rapaz parou. Olhou a rua. Olhou bem o cachorro. E os dois correram pra casa. Comecei a ouvir vozes lá de dentro. Queria saber o que houve, então cheguei pertinho do portão que de repente abriu com o carro saindo.  O pai dirigia e o rapaz abraçado ao cachorro no banco de trás.
     Voltando para minha guarida, vi gotas vermelhas no asfalto. Sentei preocupado e esperei, esperei, esperei até acabar a mesa redonda da madrugada. Quando deu umas 2 horas, eles voltaram. Só soube no dia seguinte que o cachorro cortou a bochecha com uma latinha aberta no chão. Naquela noite, eles deram uma das voltas mais tranquilas que já vi: não falavam, não discutiam pelo caminho. Andavam juntos, um pertinho, guiados pelo amor de um pelo outro.
     A barba foi crescendo no rapaz , os pelos brancos, no cachorro. E lá estavam eles no Natal, Ano Novo, dia do trabalho, de todos os santos… não pulavam um feriado. Nem nos eventos mais especiais do ano: os jogos do Corinthians. Coincidência ou não, justo neles, traziam lanchinhos pra mim. Eu ligado na tvzinha via o rapaz vindo de longe se equilibrando entre a cruz e a espada, ou melhor, afastando a comida do nariz do cachorro. Uma vez, não resisti e dei um pouco de carne pro cão. O dono olhou pro cachorro como que dissesse “seu safado, você já comeu” e depois seguiram o caminho.
     Além de alguns lanches, já tiveram outras companhias como amigos, e garotas…. Algumas pareciam que eram só amigas do rapaz, às vezes algo mais. Em contrapartida todas eram apaixonadas pelo cachorro.
     Vira e mexe o homem aparecia mais arrumado pra passear. Já apareceu  até de terno vindo de algum casamento qualquer. Foi nessa noite que percebi que o rapaz saia de qualquer lugar, de qualquer bar, de qualquer aventura, para passear. Não havia companhia melhor que o cão para ter um respiro num mundo cheio de gente e barulho.
     O cachorro também já apareceu arrumadinho, com um casaco, no inverno. Ele andava lento, empacando, sofrendo…até achei que ele tinha se machucado novamente. Mas o rapaz disse que era só frescura mesmo.  E pior que era mesmo. Quando ele tirou o esquenta cachorro, o bicho voltou ao normal.
     O tempo e as voltas foram passando. O rapaz começou a perder cabelo e o cachorro movimentos. Eles começaram a ir cada vez mais devagar, respirando mais, curtindo mais, mas não dava mais voltas longas. Mas continuavam lá. Mesmo com as pernas fracas do cachorro, mesmo com o inverno soprando mais forte, eles continuavam com os passeios
     Até que numa noite, ouvi novamente choros tristes, de quem, contra a vontade, teve que dormir sozinho. Só que dessa vez, eram choros do rapaz. E na tarde seguinte, o guarda do dia me contou o que você aí imagina: o cachorro se foi. Mas fique relaxado(a). Soube que foi natural, tranquilo e ao lado do seu melhor amigo. Assim como os passeios que sempre fez. E que o rapaz continua fazendo até hoje, em nome da saudade. 

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