Uma hora ou outra, você vai apostar
As portas duplas se abrem para os próximos apostadores. Como de costume, dou bom-dia ao anfitrião de hoje e fico na fila para o tesoureiro. Tem gente que começa a apostar ali mesmo, mas como os lugares são preferenciais, as chances são mais difíceis. Se bem que tem gente que atira a ética com o cigarro pela janela e finge um sono ou uma deficiência para trapacear na cara dura mesmo.
— Vai descer! – alguém no meio da multidão grita para o anfitrião. Ele reabre as portas, o recinto esvazia um pouquinho mais fazendo a fila andar e eu vou 2 passinhos para frente em direção ao tesoureiro.
Na minha frente, uma moça rabo de cavalo esquece de colocar crédito para a entrada e busca antigas fichas dentro da bolsa amarela. Ela tira todas as fichinhas, só que falta uma de 050. O tesoureiro olha pra ela, olha para a fila impaciente atrás dela, olha pra bolsa dela, olha pra ela e por pressão, boa vontade e um chicletinho, a moça é liberada para zona de apostas. Eu vou também, mas não antes de trocar singelos e despretensiosos “opa” com tesoureiro.
Chego na área principal e já uso minha altura desavantajada para passar pela moça esquecida e pelo rapaz de regata que não usa desodorante. Confirmo a falta de um bom perfume, uma vez que meu nariz fica na altura da região sovacal dele.
Mais uma parada, mais uma rodada, mais gente adentra para apostar e mais gente abandona o jogo liberando espaço para eu andar mais um pouco até a entrada do segundo andar, o lugar crucial para meu jogo.
Eu te explico: muito dizem que esse é um jogo de azar, mas para o destino facilitaria muito as coisas. Aqui, você precisa de foco, concentração, e, principalmente, entender a linguagem corporal, pois um simples gesto pode traduzir uma intenção. Aí que entra o segundo andar. Dele, é possível ver e ler toda área de apostas, desde a entrada com a anfitrião até a saída dos jogadores pela parte traseira.
Agora vejo como o lugar está cheio de destinos e histórias: o menino a caminho da escola usando uma mochila e all star amarelo; a moça de chinelo carregando o salto para colocar no trabalho; a velhinha com terço cheirando à missa… e é aqui que meu jogo começa.
Na minha frente, a jovem que está na janela não parece sair tão cedo. Ela tem um livro de fantasia daqueles grossos e está muito entretida. Então não aposto nela. Mas a moça de vestido florido se maquiando atrás de mim aumenta minhas chances. Ela é habilidosa com o lápis de olho e está com a perna inquieta, sinal que logo vai sair. Outro forte candidato é o rapaz todo de preto que olha o tempo todo pra janela procurando algo. Talvez a saida, quem sabe?!
Mais uma parada. A moça da maquiagem se levanta, dou um passo para o lado pra me posicionar… “licencinha, licencinha” – um sr. Miserável de roupa social e peruca se infiltra rapidamente por trás e ganha essa rodada. Erro meu de principiante: me distrai com o livro da menina. “Mas vamos lá” chacoalho a cabeça e foco na próxima rodada.
Dessa vez, aposto em 3 pessoas: o moço tatuado de coque, o cara que economizou o salário inteiro pra comprar o tênis e na mulher de vestido florido carregando a marmita.
Mais uma parada. Somente uma pessoa deixa o jogo. O resto continua no mesmo lugar. É o que os apostadores chamam de ponto morto.
Ainda sigo com minhas fichas nos três. O cara de coque se levantou um pouco. É agora que consigo. Ele vai pedir licença para sair, já aproveito e ganho o jogo. “Não…não…não é possível”, o cara só se levanta para dar uma coçadinha na bunda esquerda. Sabia que não dava para confiar em homem de coque. Mas espera, um cara de fone se levanta bem na linha diagonal. Que surpresa! Ninguém esperou por essa. Muito menos eu. Finalmente eu consigo sentar no ônibus, relaxar e curtir a minha viagem. E é um lugar que não bate o sol da manhã, não podia ser mais perfeito. Acabei de lembrar: o meu ponto é o próximo.