LollaPaLoser

O festival que é uma aventura

          Lá estou eu com os braços esticados segurando uma torta de morango diante do olhar da minha prima. Da mesma forma que os povos antigos, é preciso uma oferenda para ganhar os 4 ingressos do LollaPalooza 2019 em São Paulo que caíram do céu, digo, de uma mensagem dela: “meu marido ganhou, mas não podemos ir. Tem interesse?”       
        Será um dia só pra convidados verem a seguinte Line Up: “Portugal The Man”, “Macklemore” e “Sam Smith”, eu não conhecia bem nenhum deles, mas como minha sobrinha diz “de graça até slime com aeronauta”, seja lá o que isso significa.
        Existem pessoas que nascem com habilidades extraordinárias e a da minha prima é avaliar tortas. Os olhos dela avaliam a superfície arredondada do doce, medem a distância entre os morangos, a cor e crocância do biscoito… e como uma perua enrugada que verifica a poeira de um móvel na casa, ela passa o dedo indicador na cobertura e o leva à boca. Naqueles segundos insuportáveis de silêncio, cada emoção e pensamento que o Seu Nelson, o dono da padaria onde comprei a torta, colocou naquela receita, enfrenta o paladar que viajava o mundo à procura da fatia perfeita.
        一 Essa torta é realmente é a melhor 一 ela fica em silêncio por alguns segundos e completa 一 do seu bairro. Mas…vale os ingressos 一 ela diz enquanto mexe na bolsa.
        Ao segurar os ingressos, ouço um coral de anjos cantando “grátis” em latim. Ao fundo, bem baixinho, vem a voz da minha prima:
 
       一 Não esquece que tem um voucher para entrar com carro, hein?!
        Só existe uma coisa ingrata naqueles ingressos: os shows acontecem numa quinta-feira, às 18:30 h. Fora que o LollaPalooza é em Interlagos. Para você ter uma ideia, meu bairro é tão longe de Interlagos que quando eu namorei uma menina de lá, levei um ovo de Páscoa e só cheguei no Natal.
        Bom, só conheço 3 desocupados os suficientes pra fazer essa viagem na conhecida Hora do Caos de São Paulo: Aranha, um publicitário mestre na influência de boteco – quando ele fica bêbado, é capaz de convencer qualquer um a qualquer coisa. Inclusive foi desse jeito que convenceu a namorada dele, a Fê, a segunda pessoa, a ir junto e eu a levá-la. E por último, o Gui. Bom, o Gui é o Gui. É aquelas pessoas tão peculiares que só pelo nome você sabe quem é. E o Gui é um cara com um número tão alto de manias quanto as chances de ser pai.
       Chega a prometida quinta-feira, o dia em que nós, que trabalhamos na mesma agência, devemos sair exatamente 1 hora e 10 minutos (também conhecida como 17h50) antes do fim do expediente 一 os 10 min marcam o tempo exato para pegarmos o ônibus. Caso o perdêssemos, o outro só chegaria 40 min depois.
       Às 17h30, nos entreolhamos. Aranha e Gui já haviam conseguido permissão informal do coordenador deles. Era o famoso “eu finjo que não vi e vocês fingem que não me pediram”. A Fê usa a cartada da consulta com o psiquiatra, algo que não levanta nenhuma suspeita, uma vez que, naquela agência, todos contam com um. Ainda assim, temo que passar, um a um, pela sala de vidro do dono, de onde ele observa o movimento, e ainda desviar da catraca que controla nossos banhos de sol, digo, o horário de almoço.
       Como a Fê tem o acesso livre, vai embora primeiro. Aranha e Gui passam na frente da sala de vidro inventando uma conversa na forma culta do publicitares “vamos fazer um ganha-ganha por meio de um feedback através de um Design Thinking de BenchMark…” que, foi, casualmente, dita num tom acima do normal para o dono ouvir. Eu sentado, ainda não pensei em nada e busco atentamente ao meu redor por uma oportunidade. Os outros estão posicionados: Aranha com o pessoal do TI, Gui no banheiro e Fê de tocaia na vendinha da frente para nos avisar. Esperamos o portão abrir 一 o portão tem 30 cm de altura, ele fica ao lado das catracas e não mede horário de entrada e saída; abrindo, somente e exclusivamente, quando chega algum carregamento para o salão (de festas) que a agência aluga nos finais de semana. E isso, leitor e leitora, só acontece nas quintas-feiras.

       Chega mensagem da Fê: “abriram o portão”. Gui anda junto com os carregadores. Aranha na espera. Meu coordenador me chama na mesa dele para falar alguma coisa. Chego nele e fico concordando positivamente com a cabeça sem prestar atenção em nada. Enquanto faço isso, vejo meu departamento inteiro, e lá no fundo, um funcionário conversa com o dono da agência na sala de vidro. A distração perfeita.
       “Encontrei minha oportunidade” penso.

       Quando a conversa termina, passo direto pela minha mesa 一carregando a mochila baixa para não dar bandeira (algo que aprendi na escola). Olho o relógio do celular e vejo que tenho 8 minutos. Uma nova mensagem:
       一 Tô aqui fora também 一 é do Aranha.
       Fê avisa que o carregamento está nas últimas peças. Aperto mais o passo, chegando a tempo de ver o portão sendo fechado. Mas um detalhe está ao meu favor: o funcionário da transportadora não fechou o portão no trinco, o que significava que só uma empurradinha é suficiente para abri-lo. Preciso distrair o pessoal da recepção.
Peço ajuda para meus amigos livres e logo recebo uma mensagem do Aranha “espera só um pouquinho”.
       Um minuto depois, Aranha e Gui aparecem com uma caixa de chocolate Garoto meio vazia e oferecem, com um sorriso falso, para Elaine e Jaime, os recepcionistas. O casal começa a coçar o cabelo, franze a testa e vira a cabeça focado na caixa. Ainda meio sem entender o que acontecia, passo rapidinho pelo portão, dando tchau naturalmente. Ninguém me nota.

       Mais tarde, dentro do ônibus, Aranha me explica que eles tiraram os sabores mais famosos – ao leite, crocante, cremoso – deixando apenas os menos afortunados – o de banana, de amendoim e paçoca. E que a dificuldade de querer um chocolate e ao mesmo tempo, ter opções tão sofridas, causou um curto-circuito no cérebro que desligou as outras funções por alguns segundos, incluindo a da atenção.
       Vamos até minha casa onde está nosso transporte, a notável e ilustre “Van de Mãe” que recebe esse nome pois, como o coração materno, carrega qualquer coisa, desde material de construção até artigos da feira, inclusive os 4 bananas que iam para o Lolla.

      Entramos no carro, ajeito os banco pra frente, mais pra frente e um pouco mais frente 一  1,60 cm de altura não ajudam na hora de dirigir 一 e lá vamos para 2 horas de “bi bi..fom fom” “corre” “ali tem um espaço”, “celera, celera… mas não muito”…
      No caminho, dei os ingressos para Gui que reparou que um era diferente:
      一 Esse aí é ingresso/voucher do estacionamento – eu disse tranquilizando-o.
       Chegamos lá a tempo. A mulher da 1° catraca, a do estacionamento, verifica os 4 ingressos. Em seguida, ela destaca um deles numa linha pontilhada e me devolve metade.
       Estaciono o carro e vamos para a 2° e última catraca. No caminho, dou o ingresso para cada um e fico com a metade que a mulher da catraca me deu. Aranha e Fê passam com seus códigos no leitor a laser que apita liberando a catraca. Quando é a minha vez, nada do leitor apitar, muito menos ficar verde. O segurança me vê tentando:
       一 Deixa eu vê seu ingresso.
       一 Esse aqui não é ingresso, é só um voucher.
       一 Não é possível.
       一 Olha aí garoto, não tem código aqui – e aponta para o papel.
       一 A moça pode ter pego a metade errada – disse Gui que ainda não tinha passado na catraca.
       一 Boa ideia, vou voltar lá e perguntar pra ela.
      Ando por 5 minutos até a entrada do estacionamento. Explico para a moça da catraca o que tinha acontecido.

      一 Não existe ingresso/voucher, só voucher estacionamento mesmo – ela diz isso, enquanto me mostra que não recolheu nenhum ingresso por engano.
      Vendo que a moça está ocupada e não poderia me ajudar, decido voltar ao segurança da catraca do show. Mas, para não andar 5 min de volta, resolvo pedir uma carona, para um dos carros que está entrando, até o fim do estacionamento. E surpreendentemente, dá certo.

      Vou me aproximando do segurança, já treinando os olhos do cachorro pidão na chuva. Convencer aquele homem alto, de terno e de cara amarrada é minha única esperança.

      一 Então seu segurança.
      一 Ricardo – ele responde sério
      一 Acontece uma coisa superengraçada – eu forço um sorriso.
      Ricardo não esboça nenhuma reação.
      一 Ganhei ingressos da minha prima pra esse show exclusivo. Só que sou muito burro e desligado, e achei que um dos tickets era pra estacionamento e ingresso de entrada, mas na real, é só para estacionamento. Engraçado, né?! Meus 2 amigos estão lá dentro, só falta eu pra curtir esses shows todos com eles…
      一 Hunf – Ricardo faz um som com a boca fechada.
      一 E sabe que pode me ajudar?!
      一 A Cleide de catraca.
      一 Não, não, já falei com ela e não deu em nada. Mas tô falando, Ricardão. Posso te chamar assim?
      一 Não.
      一 Tá, Ricardo, só você pode me ajudar. Daquele jeito, sabe – então faço a cara de cachorro ao mesmo tempo que pisco.
Ele olha pro meu rosto:
     
一 Vai vomitar? Faz longe de mim!
      一 Não, essa era minha cara de… deixa pra lá. Mas eu tô falando sério, só tenho esse ingresso – e mostro o ticket.
      一 Isso é uma tatuagem de pirata? – Ricardo aponta para o meu braço.
      一 É sim, por quê?
      一 Meu filho adora pirata, ele também quer fazer uma.
      一 A é?! Quantos anos ele tem?
      一 8. – Ricardo começa abrir um sorriso.
      一 Que legal…
      一 O moleque adora se aventurar pelos 7 mares. Ele faz nosso sofá de barco e diz que o chão
é o mar. E sabe quem é o papagaio? O nosso cachorro – Ricardo ri.
      一 Fiz essa tatuagem em homenagem Piratas do Caribe, amo esse filme.
      一 Nossa, meu filho também ama o Jack Sparrow!
Discretamente chamo meus amigos, todos se aproximam da catraca e, espertamente, fazem perguntas para Ricardo. Então acontece uma simples troca: o segurança fica 10 minutos falando do filho enquanto nós fingimos estar interessados.
      一  Tá vendo, Ricardo, essa foi minha aventura pirata do dia. Só que sai pros 7 mares despreparo.
      一  Você me lembra meu filho mesmo.
     Eu abro um leve sorriso.
     一 Ele é meio tapadinho igual você – Ricardo completa.
   Eu ignoro e falo:

   一 Eeeeee…?
   一 Tá bom, garoto, vou pegar um dos ingressos que sobrou aqui e passo pra você.
   Todos comemoramos e, um a um, agradecemos Ricardo.
Presenciamos shows fantásticos, com vocais e bandas surpreendentes, e o melhor, como é só pra convidados, nada está lotado, nem o bar, nem o banheiro e nem perto do palco onde ficamos. 
   E na volta, no carro, todos cantamos punk rock num alto coro, e eu, dirigindo, tenho uma só certeza: o dia de hoje vai ser uma boa história pra contar.