Samuel

A história de um professor que levava consigo a maior das lições: a paixão por ensinar.

Em todos aqueles anos no Judô, alguns conhecidos e até amigos tinham passado pelo Tatame, afinal, as aulas eram no colégio e muita gente entrava por curiosidade e acabava ficando. Eu também já havia lutado com muitos adversários diferentes: um cara com kimono fedendo, outro com 4 dedos no pé e 6 na mão, um cuja mãe ameaçou o cachorro do árbitro… Mas era a primeira vez que meu oponente seria um professor de escola. O meu professor da escola. E de matemática ainda! 

Só te digo que quando você pode sair na porrada lutar respeitosamente com o representante da matéria que te deixa na recuperação todo ano, muitas coisas passam pela sua cabeça ㄧ e cá entre nós, estes pensamentos não são de Deus.


“HAJIME” ㄧ o Sensei mandou e em bom e velho Judonês, isso significa: Tatame é onde Pitágoras chora e Galileu não vê!


Como a grande parte dos meus professores, o Samuel era muito inteligente e sua coragem admirável. Não apenas por ensinar adolescentes playboys da classe média brasileira, como também pelas iniciativas.

Começando pelo primeiro dia. Se você se lembra bem, no 1º colegial, a expectativa está à flor da pele por conta da fase; da chegada das galera nova e das festas de 15 anos; você (achando que) já é um adulto; e o primeiro dia junta tudo isso com a saudade dos amigos. Acontece que em 2006, só tínhamos (o finado) Orkut, ou seja, sem linha do tempo, sem stories e na xeretada do perfil, a gente via no máximo alguns depoimentos ㄧ ai,ai, saudades Orkut. Bom, isso tornava a fofoca muito mais pura, fofoca boca-a-boca mesmo e exigia uma preparação (qual história contar? e como contar?) porque querendo ou não, havia um público que chegaria afoito pelos seus causos das férias.

Mas nada de reunião das tias da janela na aula do Samuel. Logo chegou, deu bom dia e se apresentou falando pouco e firmemente, objetivo e claro como sua matemática “abram os livros que a álgebra não espera”, e dale exercícios ㄧ professor, se estiver lendo isso, vamos admitir que faltou humanidade. E não importava o estado de calamidade da turma, seu tom de voz se mantinha o mesmo, exceto em nomes próprios que eram ditos mais altos e graves. E olha que não faltou motivos para gritar com a classe 1.2 ㄧ professor, se estiver lendo isso, vamos admitir que exagerou na humanidade em alguns casos.


“Esse miserável não me deixa pegar no Kimono…Já sei, vou fazer cara de mau para abalar o psicológico dele… Espero que eu não esteja fazendo bico….droga, ele me derrubou com a Lei dos Cossenos…”


Dava para ver de longe que ele tinha paixão no que ensinava, e víamos isso claramente quando, entre um exercício e outro, ele surgia com uma conta maluca sobre algo inútil “se você somar a minha idade, com o número de aulas que temos na semana e multiplicar pela idade do tio de Arquimedes, o resultado são números primos em sequência!”, ou quando ele ensinava um truque pra facilitar alguma conta milenar. Pura magia.

Também conhecia os segredos das colas ㄧ estava atualizado com os sistemas mais avançados dos alunos. Lembro que antes da prova, existia uma ritual “Todos de pé, ao lado da carteira, mãos pra cima e mangas abaixadas” e assim, ele ia passando um por um, verificando se algo estava escrito na mesa ou escondido nos pulsos ㄧ imagino que hoje em dia, ele deve trazer um bloqueador de celular. Ao mesmo tempo, como um gesto de confiança, nos revelava os truques dos outros professores. Um deles: espiar a turma pelo reflexo do vidro da porta. Samuel era o Mister M das aulas ㄧ e se fosse hoje, eu o chamaria de Matemágico.


“Droga…quase fui derrubado de novo….preciso me concentrar antes que ele use Bháskara…”


Na correção, ele também fazia diferente: dava pontos pelo raciocínio, não só pelo resultado. Então, toda continha, todo pensamento no caminho certo, te ajudava no final da prova e o mesmo valia para o oposto, não adiantava colocar só a resposta certa ㄧ um jeito de dificultar a cola e de saber onde cada um errava.


“A-há…caiu miserável….1 a 1 heim…Toma essa Sr. Logaritmo…Quero ver você contar pros professores que você perdeu pra um aluno…”


Mas sua iniciativa mais famosa foi A Ponte de Macarrão, que também ganhava o tom imponente na sua voz. Na época, um grupo de alunos se interessou “que massa!”, eles diziam. Enquanto eu? Eu não entendia nem de matemática, nem macarrão e nem de ponte. Mesmo assim, vou explicar o conceito ㄧ afinal, preciso honrar o tema desta crônica e ensinar algo ㄧ, nessas pontes só se pode usar uma marca específica de macarrão e a estrutura tem um limite de altura, comprimento, peso e uso de cola. No mundo dos engenheiros, existem competições mundiais pra ver qual estrutura aguenta mais peso. Até onde eu vi, o recorde é de 466,05 kg.

Infelizmente, a ideia desmoronou no caminho, assim como a Olimpíada de Matemática, a Competição de Aviões de Papel e os Robôs de Lego. Todos, projetos do Samuel.

Aí chegou o dia que ele descobriu que meu sensei era ” a Lenda Rioiti Uchida” e seus  olhos brilharam igual aos meus quando acabava a aula dele ㄧ Brincadeira. Depois de uma semana sem mencionar mais nada, ele apareceu no Tatami.


MATÊ! Arrumem os Kimonos e se cumprimentem! ㄧ É… mais uma pra conta de lutas inusitadas.


No dia seguinte, Samuel resolveu ㄧ olha minha influência aí ㄧ fofocar sobre a experiência e perguntaram como eu tinha ido: 

ㄧ O Pedro é muito bom, mas pra ficar melhor, precisa melhorar a técnica e a concentração. 

Pelos menos foi o que me contaram, já que eu estava olhando o jogo de queimada do maternal pela janela. Mas acho que tanto pra mim, quanto pro Samuel, não importava quem ganhou aquela luta, pois, se tem uma lição que aprendi é levar comigo um pensamento ㄧ tão óbvio que às vezes a gente até esquece ㄧ e que meu professor dizia antes de todas as provas:

“Concentre-se, faça o seu melhor, mas lembre-se que a prova é só o teste de como vocês estão hoje. A competência é algo construído a longo prazo e jamais deve ser medida por um único dia na sua vida.”

One Reply

  • Aproveitando o link com o Orkut, resolvi deixar um scrap aqui, quer dizer, um recado! 🤭

    Que crônica leve e gostosa de se ler! Tive professores com o mesmo espírito do Samuel e acredito que faltam muitos deles em salas de aula, trazendo o brilho de ensinar e incentivar alunos a serem melhores.

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