“Tô chegando já”

O amor deixa marcas, mensagens também.

                Nessa noite até passa pela minha cabeça ir embora e minha menina me incentiva: “a gente marca outro dia”. Mas eu não me importo, afinal estou tão acostumado a esperar nessa estação, que ela virou nossa segunda casa. Além do mais, eu não posso perder uma oportunidade única: cheguei antes.  E todo mundo sabe que quem gosta, joga na cara que não atrasa 一 meus sinceros agradecimentos à faculdade dela que, finalmente, trouxe uma aula que não podia ser abandonada.
                E aí que acontece meu primeiro encontro com essas palavras: “Tô chegando já”. Parece boas notícias, porque mais um tempinho e posso ver a saia listrada com tênis branco se aproximando e rompendo o marasmo cego de uma multidão de passageiros. Eu reconhecia aquele estilo de longe e amava tê-lo cada vez mais de perto. O beijo de saudade dela vem com um agradecimento por eu não ter partido.
                Os segundos e os vagões correm. Até que chega o momento que o estereótipo 一 o mais velho é o estraga-prazeres ou responsável, dependendo do ponto de vista 一 fica a favor dela. Então, sobra pra mim o ritual de avisar sobre a hora, desentrelaçar nossas pernas, arrumar os cabelos e ser chamado de: “chato”, até a plataforma, onde o beijo de despedida e o sinal de embarque do trem dizem “até a próxima estação”.
                                                   *             *             *

              “Não acredito que você nunca foi na Pinacoteca”. Temos que ir!” 一 ela diz com floreios de supresa. E foi assim que marcamos a tal exposição de um artista carioca.
              Encostado na entrada do Museu eu ouço de sorrateiro a história da Lu, filha do pipoqueiro, que organiza festas de crianças e é apaixonada pelo pior palhaço do Buffet 一 segundo o pipoqueiro 一 que adora…
              Meu celular vibra. “Tô chegando já”. Eu estranho aquela repetição exatas de palavras e fico um tempo olhando para a tela sem saber o porquê. Lembro de uns meus filmes favoritos 一 Peixe Grande e Suas Histórias Maravilhosas 一 que o protagonista relata sobre momentos em que o tempo para: “…quando ele volta, vem acelerado pra compensar”, e foi exatamente o que aconteceu. Quando volto a mim, fico mais perdido na história que cego em filme mudo. “Droga! O palhaço se demitiu e foi fazer faculdade de advocacia?”, “ela fugiu com o mágico?” “como assim a pipoca doce sai mais que a salgada?”. Quando percebo, minha menina de pele desenhada e olhos de descoberta já está ao meu lado. Um beijo 一 com um gosto meio diferente, admito 一 e um “bora?” com sotaque de todas as cidades que ela morou não deram chances à minha curiosidade pelo drama do pipoqueiro.
              Dentro da Pinacoteca, corremos, pulamos, desenhamos, nos deitamos, exploramos cada obra 一 nunca imaginei que dava pra fazer tanta coisa em redes de pesca. E apesar de eu não entender nada, sinto toda a arte: a gente se deixando levar com meias encardidas e sorrisos nos rostos; os momentos de carícia aos poucos aumentando; as conversas da alma surgindo como piadas sem compromisso. A noite termina na casa dela, na nossa exposição de sentimentos.

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              Quinta é dia de negócios. E bons negócios: eu a acompanhava até em casa e ela me oferecia boas histórias.
              Enquanto eu espero e observo atentamente cada funcionário saindo pelas catracas da empresa dela 一 preciso estar em dia com os causos da semana 一 recebo, no celular, um novo: “Tô chegando já”
              Talvez você não saiba, mas quem tem intimidade com as palavras, costuma conhecer o vocabulário das pessoas, principalmente as mais próximas. Temos a noção que uma palavra nova ou em outro lugar, pode ser a diferença entre uma poesia e um TCC. E aquela expressão que, apesar do 3° encontro, não ganha meu afeto, tem um ar meio solitário na prosa dela, quase uma forasteira que traz um presságio.
              Coincidência ou não, nessa quinta, esse sentimento de distância passa pra ela num piscar de olhos. Mas, na outra piscada, já está de volta os olhos que eu conhecia. As ruas que cruzávamos nunca tiveram nome e mesmo assim eu sabia cada uma de cor. As confidências começam subindo pela escola de inglês, ganha aroma de café virando à direita na padaria, desviam das cadeiras do bar e terminam no fim da ladeira, no apartamento 61. Naquela noite, voltei pra casa com perfume de beijo na nuca.

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              A cafeteria já ganha os ares de bar, com o Mochaccino e Cold Brew, dando lugar ao Moscow Mule e Old Fashioned,na parede de giz. Chego e um garçom logo pergunta o que eu desejo, só que eu mesmo já tinha encontrado no balcão. Encontro, abraço forte, beijo e noto os olhos perdidos da minha menina. Depois, vem as palavras desbotadas. Uma ironia elas saírem de uma boca com batom vermelho. E então percebemos que o “vai ser só uma vez” se transformou em “fica só mais um pouquinho”, que os abraços ficaram mais apertados, que nossos laços estavam lá, vivos e presentes, mas que os laços dela com o passado também. Só que mais fortes. “É uma outra história” ela disse. “Que eu nunca vou entender”, completei com a angústia na garganta. Ela agradeceu pelos momentos e saiu.
              Após um tempinho, noto uma notificação que eu deixei de lado por conta do meu atraso. E percebo que não foi por acaso que eu estou alí. Porque aquele momento anunciou sua chegada em cada mensagem. E uns minutos antes, eu tinha recebido a última “tô chegando já”.

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