Uma aventura de ano novo
Hoje é uma noite muito especial e ao mesmo tempo rara. Não é só pelo fato de estarmos juntos, mas por estarmos juntos nas férias. Isso porque, meus pais sempre foram muito ruins de timing: marcam viagens de família na época em que a minha turma toda está em São Paulo. Mas, dessa vez, os planetas se alinharam e na mesma cidade, na mesma praia para onde viajei, meus amigos também foram. São eles:
Rudi, 10 anos, que de tão malandro vendeu papel picado para gringo falando que era cocaína; Dudu de 9 anos, daquelas pessoas que não conversa, palestra…; e Carlinha, a menina cujos cabelos loiros escondem um ser destemido e dono de minha paixão – talvez porque ela seja a única menina do grupo.
De dia, temos uma vibe ala malhação: ficamos de boa na praia ouvindo Charlie Brown e tomando suco no Bar do seu Chico que fica pertinho do nosso condomínio: “Pata de Tartaruga”.
E quando o sol se põe, jogamos cartas enquanto nossos pais assistem “O Clone”. Cada vez, é um jogo diferente: poker, rouba monte, presidente, desconfia…o Dudu sabe todos de cor. E o desta noite de réveillon é canastra ou buraco. Até porque, com uma chuva de verão, o mundo desaba ao nosso redor . E por isso, os adultos decidiram preparar a ceia e assistir aos fogos na praia, se o tempo permitir.
Antes de começar a próxima rodada, Rude fala:
— Que tal a gente deixar o jogo mais legal? – Prestamos atenção – “A dupla que perder, vai te quer ir lá na praia, pega uma conchinha e voltar.
Todos engolem seco, pois o caminho até a praia é totalmente escuro, estreito, de madeira e com mato pelos cantos. Até agora, ninguém com 10 anos tinha ido lá a noite e sobrevivido. Pelo menos é o que dizem. Mas minha crush, instintiva até demais disse: “eu topo, quero ver vocês ganharem da gente”.
Eles ganharam.
Eu e Carlinha nos aprontamos com as únicas coisas que poderíamos levar: um guarda-chuva amarelo e a coragem dela, e saímos.
— Você não entendeu meus sinais na hora do jogo? A gente podia ter ganhado – Carlinha disse indignada.
— Que sinal?
— Os sinais ué, as piscadas, passada de perna que eu tava dando para você compra o monte.
— Nossa, não tinha reparado – eu tinha sim, mas achei que era um charme dela pra cima de mim.
A iluminação das casas vai deixando de clarear o caminho, nos sobrando apenas a iluminação do luar. A chuva aumenta. Nós esprememos no guarda-chuva. Ouvimos algo.
— Que foi isso? – eu pergunto.
— Nadinha.
— Certeza?
— Claro…
Um vulto passa rapidamente na nossa frente, ela fica em silêncio alguns segundos e continua:
— Que não! Corre.
Enquanto corremos e matos passa na nossa frente, reparo a que coragem dela também nos tinha abandonado. Restam eu, ela e o guarda-chuva.
— É impressionante como a gente não repara em nada dessas coisas de dia…Aiiii
— Que houve?
— Acabei de chutar aquele maldito tronco que toda vez a gente pula.
— Deixe eu vê. É ele mesmo – enquanto analiso o tronco com as mãos acabo esbarrando de leve nela e penso: “como alguém pode ter essa pele tão macia. Ainda mais nos pés?”
O caminho parece eterno e a cada passo nosso, o som vindo da mata aumenta. Uma das minhas mãos segura no guarda-chuva e a outra, instintivamente, procura pela mão de Carlinha que também procura a minha. Tento nos acalmar:
— Esses barulhos devem ser das outras turistas indo até a praia.
Ela não diz nada e aperta minha mão um pouco mais forte.
De repente, dois vultos vêm em direção a gente. Com um grito e toda falta de coragem do mundo, eu pego o guarda-chuva e ataco:
— Que isso garoto? Tá doido?
— Seu Chico?
— Isso. Não tem outro nessa praia não.
— Foi mal, você assustou a gente.
— Oi, crianças – ouvimos uma voz feminina nova.
— Ué, Dona Fran? Que voz diferente – Carlinha respondeu.
— Aqui é Leticia – a voz respondeu.
— Se Dona Fran não tá contigo. Onde tá?!
— Ela tá…hummm…quero dizer… onde vocês tão indo essa hora? – ele fala com uma certeza nunca antes vista
— Dá uma voltinha na praia.
— Ah, só seguir reto aí que você já já chegam. Mas vão rápido que daqui a pouco soltam os jogos – e rapidinho sumiram na escuridão.
Andamos mais um pouco até que de repente, o mato acaba, sentimos a areia e a brisa do mar se misturando ao cheiro de chuva. Algumas gotas escapam do guarda-chuva e nos molham. Nem ligamos, nós apenas nos olhamos como quem dissesse “conseguimos”. E por ali ficamos: ela atenta aos fogos que começam a colorir o céu e eu observando de pertinho, as gotas desenhando o rosto dela até o sorriso. Nos damos as mãos e meu sorriso também surge, assim como um pensamento na minha cabeça: “algumas apostas nasceram pra serem perdidas.”